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Missão iniciada no tempo, e perpetuada na eternidade

“Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto”.

Humberto Luís Goedert

Quando temos a intenção de conhecer uma obra arquitetônica notável, uma louvável entidade de apostolado ou, ainda, uma personagem ilustre, faz-se necessário elaborar de antemão uma síntese dos acontecimentos pinaculares a elas relacionados, que as torne mais acessíveis ao nosso entendimento. Com efeito, tudo quanto transcende os limites do comum, ou é visto com olhos bem assestados, numa devida conjugação de fatos e princípios, ou acabará sendo compreendido de modo unilateral ou insuficiente.

Assim, as presentes linhas, que abrem uma sequência de artigos sobre aspectos diversos da personalidade, vida e obra de Mons. João Scognamiglio Clá Dias, servirão para situar o leitor nos aspectos gerais da vastíssima matéria, os quais, nas páginas seguintes, serão tratados com maior profundidade.

Primeiros passos

Filho de Antonio Clá Dias, espanhol, e de ­Annitta Scognamiglio Clá Dias, italiana, o pequeno João recebeu o Batismo no dia 15 de junho de 1940, exatos dez meses após seu nascimento, ocorrido na Solenidade da Assunção do ano anterior.

De feitio analítico e reservado, mais gostava de observar os circunstantes do que conversar e externar seus pensamentos, sinal do singular senso contemplativo que sempre o caracterizaria. Acometido por frequentes insônias desde tenra idade, seu passatempo preferido consistia em ­admirar o céu e as estrelas durante a noite, através da janela de seu quarto.

Fato marcante em sua vida deu-se quando tinha cinco anos, ao entrar numa capela e se deparar pela primeira vez com o Santíssimo Sacramento exposto, no justo instante da bênção. Embora desconhecedor daquela realidade transcendente, sua fé lhe inspirou tratar-se de um mistério central da Religião, sentindo-se logo cativado pelo imponderável, todo ele recolhido e sacral, que se desprendia da Hóstia e penetrava no profundo das almas dos fiéis.

Monsenhor João em agosto de 2013

Enlevado e atraído pela Eucaristia, sua devoção a Nosso Senhor Sacramentado constituiria o alicerce sobre o qual edificaria, no futuro, o sólido baluarte de sua piedade.

Mais tarde, no período estudantil, distinguiu-se como primeiro aluno da classe, especialmente em Artes e Matemática. Apesar disso, eram as narrativas da História Sagrada e as aulas de catecismo que faziam o seu encanto.

Em 26 de janeiro de 1948, recebeu o Sacramento da Crisma, sucedido meses mais tarde pela Primeira Comunhão. Penetrado por uma vida sobrenatural mais intensa, começou a discernir o quanto a conduta de não poucas pessoas com as quais convivia – colegas e familiares – destoava da verdadeira moral.

O choque entre o bem e o mal acentuava-se a cada dia em sua alma, despertando nele o desejo de reverter de algum modo aquela confrangedora situação, apesar dos insuficientes meios de que dispunha, e de amparar seus coetâneos para que trilhassem as vias da virtude.

Como decorrência da preocupação em difundir o bem, despontou-lhe o gosto pela Psicologia e pela Medicina, às quais passou a dedicar-se com afinco, por constatar quantas pessoas se deixavam escravizar pelo egoísmo, agindo tão só pelos próprios interesses.

Destarte, uma certeza inabalável, oriunda da fé, solidificou-se em seu interior: “Tem de haver no mundo um homem inteiramente bom e desinteressado! E este homem, algum dia, eu hei de conhecer”.

Encontro providencial

A esperança, ensina-nos São Paulo, nunca decepciona (cf. Rm 5, 5). Os anos transcorreram e, ao participar da novena a Nossa Senhora do Carmo em 7 de julho de 1956, deu-se o tão esperado encontro que marcaria os ulteriores passos de sua trajetória. Divisando um homem avantajado, seguro e decidido no fim do cortejo dos terciários carmelitas que abria a cerimônia, discerniu nele, num lance de olhos confirmado por uma certeza interior, o varão providencial que mudaria o rumo dos acontecimentos: Plinio Corrêa de Oliveira.

Daquele momento em diante, Dr. Plinio passou a ser o formador da mentalidade do jovem João, animando-o na prática da virtude, estimulando-o no serviço da Religião e apontando-lhe a direção a ser seguida. Entre ambos houve a mais sincera permuta de ideais e entrega de vontades em prol da Santa Igreja.

Dr. Plinio e Mons. João em 1990

Formação do caráter

Como primícias de sua adesão ao Movimento Católico, em 1957 ingressou nas Congregações Marianas, sendo admitido na Ordem Terceira do Carmo e logo se consagrando como escravo de amor à Santíssima Virgem, segundo o método de São Luís Maria Grignion de Montfort.

Em 1958, foi chamado a prestar o serviço militar. Embora tal fato pudesse num primeiro instante constituir uma provação, já que o afastaria necessariamente dos círculos de convívio com Dr. Plinio e da assídua frequência à Ordem Terceira Carmelitana, teve ele relevante importância na formação de seu caráter. A disciplina, associada à exigência dos horários e da compostura, forjou em sua alma o gosto pela ordem, dando-lhe a convicção de que somente a integridade é capaz de arrastar outros atrás de si, para uma causa justa.

Próximo de alcançar a idade madura, o então Sr. João já havia passado por uma série de situações que foram lapidando seu feitio, às quais se somaria outro elemento de não menor importância, em virtude do grande fruto que dele tiraria: a música. Ciente de sua eficácia na evangelização, aperfeiçoou seus conhecimentos nessa arte com o renomado maestro espanhol Miguel Arqueróns. Daí em diante, não deixaria passar ocasião de formar um coro ou uma orquestra, com vistas ao apostolado.

No convívio diário com Dr. Plinio – de quem se tornou o inconteste discípulo fiel –, o Sr. João embebeu-se ainda do dom de sabedoria tão característico da espiritualidade de seu mestre, fazendo desabrochar assim suas qualidades naturais e sobrenaturais, e as irradiando para benefício da causa católica em finais da década de 1960, ao iniciar a experiência de vida comunitária num regime regrado.

Generosa doação e frutífero apostolado

Em decorrência de sua generosa doação, a partir de 1975 tornou-se orientador de centenas de jovens pertencentes à Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – a TFP –, cabendo-lhe a tarefa de fortalecer inúmeras pessoas na Fé; a muitas, arrancar das más influências do mundo; a outras, ainda, incutir-lhes ânimo para a prática da virtude na vida comunitária.

A excelente e profícua atuação que o Sr. João desenvolveu junto a diversos grupos do movimento fundado por Dr. Plinio confere todo o propósito aos elogios que este teceu a seu respeito, ao considerá-lo, acima de tudo, como “arquifilho”.

Todavia, com a morte de Dr. Plinio em 3 de outubro de 1995, a vida do Sr. João passaria por uma guinada inesperada: primeiro, porque quase a totalidade da obra lhe caía nas mãos, dado que a parcela mais sadia de seus membros só encontrava nele o líder capaz de reger uma família de almas presente em cinco continentes; segundo, por todos saberem ser ele o depositário dos mais íntimos anseios de seu pai, mestre e guia.

Investido pela Providência com a tarefa de conduzir um movimento de envergadura mundial, o Sr. João tinha claro o rumo a tomar para que aquela herança jamais se visse prejudicada ou extinta: firmá-la na rocha inabalável de Pedro e nos baldrames de Cristo Sacramentado.

Em 1999 decidiu fundar a Associação Internacional Privada de Fiéis Arautos do Evangelho, que recebeu a aprovação pontifícia do Papa São João Paulo II em 22 de fevereiro de 2001. Como pressentia, foi sob as bênçãos da Cátedra de Pedro que a família de almas iniciada a duras penas por Dr. Plinio se robusteceu e recobrou o alento necessário para perseverar nas vias da santidade.

Em pouco tempo, a associação já estendia sua atuação por setenta e oito países e passava a exercer inúmeros labores nas paróquias, por meio da animação litúrgica, do Apostolado do Oratório Maria Rainha dos Corações, das missões marianas e das visitas a cárceres e hospitais, além de contar com o serviço de mala direta e com a publicação desta revista.

o Papa João Paulo II recebe os Arautos do Evangelho por ocasião da aprovação pontifícia da instituição, em fevereiro de 2001

Passada uma década desde o falecimento de Dr. Plinio, a obra via-se integrada por inúmeros rapazes e moças, reunidos em comunidades separadas. Nutriam-se eles de uma intensa espiritualidade, fundamentada na Eucaristia diária, na Adoração ao Santíssimo Sacramento e na recitação do Rosário, e seguiam por livre deliberação os conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência.

Vocação sacerdotal

Tal conjuntura de fatos levou o Sr. João a pensar na conveniência de se fundar um ramo sacerdotal, capaz de prover às necessidades espirituais dos membros dos Arautos do Evangelho, bem como de prestar atendimento a quantos compartilhassem desse carisma. Com efeito, seu crescente amor à Eucaristia e ao serviço do altar inspiravam-lhe, desde muito, um entranhado desejo: trilhar as vias sacerdotais.

Em 15 junho de 2005, junto a outros quatorze membros dos Arautos do Evangelho, o Diác. João foi ordenado sacerdote naquela mesma Basílica de Nossa Senhora do Carmo, em São Paulo, na qual conhecera Dr. Plinio. A partir da renovação do Santo Sacrifício do Calvário, ele começou a ver realizado o sonho de transformar a face da terra, conforme lhe prometera seu pai espiritual, em seu interior, ao se entrecruzarem por primeira vez décadas antes.

Fazia-se indispensável, porém, solidificar o recém-nascido ramo sacerdotal através da aprovação da Santa Sé, a qual se deu em 21 de abril de 2009, pela autoridade de Sua Santidade Bento XVI: estava erigida sob os auspícios de Pedro a Sociedade Clerical de Vida Apostólica Virgo Flos Carmeli, que conta hoje com mais de duzentos clérigos.

Como parte desse incremento institucional, pari passu à ereção da sociedade clerical o Pe. João promoveu a fundação da Sociedade Feminina de Vida Apostólica Regina Virginum, na qual adentraram candidatas que, havia muito, desejavam compartilhar do carisma dos Arautos do Evangelho de modo integral. Alcançaram elas a aprovação da Santa Sé em 26 de abril de 2009.

Mons. João durante a celebração da Santa Missa na Basílica de Nossa Senhora do Rosário, Caieiras (SP)

Difusão da obra

Expandidas as frentes de apostolado na Igreja, com o sacerdócio e a institucionalização do ramo feminino, outro alvo apresentava-se na mira do fundador: era preciso plasmar essa realidade espiritual em obras arquitetônicas, através de igrejas, mosteiros e outros prédios.

Atualmente, mais de quinze anos após iniciar a edificação de seu primeiro templo, a Sociedade Clerical Virgo Flos Carmeli zela por diversas igrejas e oratórios espalhados pelo mundo – entre eles, duas basílicas –, a partir dos quais pode oferecer a cura de almas e o ministério sacramental, por meio dos sacerdotes que a servem.

Aos olhos de Bento XVI, a obra do Pe. João de tal maneira passou a exercer uma notável influência na Igreja que, em 2008, ele o nomeou Cônego Honorário da Basílica Papal de Santa Maria Maior, em Roma, e Protonotário Apostólico Supranumerário. Em 2009 o mesmo Santo Padre conferiu-lhe, pelas mãos do Cardeal Franc Rodé, a insigne Medalha Pro Ecclesia et Pontifice.

A atuação de Mons. João e de sua obra, transpondo os limites do habitual, chegou também aos restritos e exigentes campos da intelectualidade, por meio de diversas publicações e da ereção de institutos acadêmicos, os quais ministram cursos de formação filosófica e teológica aos candidatos ao sacerdócio da sociedade clerical e aos membros da sociedade feminina, além de editarem a revista acadêmica Lumen Veritatis, que goza de renome internacional.

Varão que deve ser visto com olhos sobrenaturais

Feitas essas considerações, pouco entenderíamos da pessoa de Mons. João se a contemplássemos mais com olhos humanos do que sobrenaturais pois, quando a Providência dota alguém de um chamado tão providencial, nunca o faz só para o seu próprio proveito, mas, antes, para o bem da Igreja e de quantos venham a compartilhar daquela missão, próxima ou remotamente.

Dessa sorte, a maior dádiva outorgada por Deus a Mons. João não se cifrou em tudo quanto aqui expusemos, ou seja, em conquistas materiais e inclusive espirituais. O dom supremo a ele concedido foi o de ser um homem amado com predileção pelo Espírito Santo e por Nossa Senhora, que em tudo o quiseram configurar com Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por isso, a mais penosa luta de Mons. João não consistiu em abrir casas de vida comunitária, fundar uma associação de fiéis, erigir sociedades de vida apostólica, ou reger coros e orquestras; tampouco em estabelecer os sólidos fundamentos de uma obra que, segundo ele sempre sonhou, deveria estar alicerçada no Preciosíssimo Sangue de Cristo, sendo uma com a Igreja. A mais árdua e gloriosa batalha deu-se no íntimo de seu coração, onde ele – só, com Deus – precisou recolher todos os frutos de longas décadas de dedicação integral e entregá-los ao Criador, silenciar-se, ver-se privado de seus movimentos e oferecer tudo em holocausto a Deus, como consequência de um acidente vascular cerebral que o acometeu em 2010.

A mais dura batalha de Mons. João se deu no íntimo de seu coração, onde ele recolheu os frutos de décadas de dedicação, silenciou-se e, privado de seus movimentos, ofereceu tudo em holocausto a Deus

“Cidades restauradas e repovoadas”

Para além dos labores apostólicos levados a termo com sucesso por mais de oito décadas, e das enfermidades sofridas com heroica firmeza, chegou a hora da vitória final, que lhe custaria o admirável preço capaz de ser pago somente com a entrega da própria vida pois, “se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto” (Jo 12, 24).

Tendo Mons. João cruzado os umbrais da eternidade e sido acolhido no regaço maternal de Nossa Senhora, tudo quanto ele plantou, regou e colheu é hoje uma seara que tende a se difundir, constituindo-se cada vez mais no imenso e íntegro campo no qual a Igreja produzirá renovados frutos. Então se poderá dizer: “Esta terra que se achava devastada tornou-se um jardim do Éden! Essas cidades em ruínas, desertas e desoladas, estão agora restauradas e repovoadas” (Ez 36, 35).

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