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“Sois da estirpe dos heróis 
e dos Santos!”

“Cavaleiros que aqui me ouvis, escutai os gemidos de Sião”. A expressão é sobremaneira elucidativa: em cada período histórico, Sião – ou seja, a Santa Igreja – geme à espera de heróis que a defendam. E a vida de Mons. João consistiu em atender tal apelo.

Pe. Luiz Francisco Beccari, EP

Perguntas… A vida está cheia delas. No caso dos Arautos, por exemplo, algumas se repetem com tal assiduidade que o indagado se torna capaz de adivinhá-las nos lábios de seu interlocutor antes mesmo de haverem sido formuladas. Sem dúvida, quase todos os membros desta instituição ter-se-ão deparado muitas vezes com a seguinte interrogação: “Por que vocês usam essa roupa?”

Nada mais compreensível. Afinal, em pleno século XXI, encontrar homens e mulheres, na sua maioria jovens, tratando-se com uma linguagem distinta, involucrada por um timbre de voz desimpedido, e caminhando com cabeça erguida e passo resoluto em qualquer parte, inclusive no presbitério, pode bem suscitar alguma estupefação. E em boa parte dos casos, tais atitudes geram um juízo muito rápido e definido, seja de admiração ou de rejeição.

Dir-se-ia que a somatória de todas essas impressões se condensa no hábito por eles usado, vestimenta na qual convivem duas realidades a tal ponto discrepantes – na aparência – que, quando reunidas, parecem friccionar-se até soltar faíscas: o escapulário com uma grande cruz, a corrente da escravidão a Nossa Senhora, um belo rosário e… botas?! Trata-se de uma união entre o religioso e o militar, idealizada por Mons. João, que longe de produzir um retraimento da Opinião Pública em relação à Igreja enquanto supostamente “intolerante”, “rígida” ou “sectária” – conforme resmungam sem clemência os fundamentalistas do diálogo e da “misericórdia” –, na maioria dos casos encanta, deslumbra, comove e chega até a arrastar rumo à santidade.

Tudo isso, novamente, faz brotar perguntas que merecem respostas. Perguntas, perguntas…

Militarismo e fé: um paradoxo?

Na verdade, a explicação para o fenômeno resulta muito simples, por mais que possa chocar certas mentalidades: detrás desse estilo de vida reluz um dos mais belos aspectos do espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Com efeito, não está afirmado pelo Salvador nos Evangelhos: “Não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10, 34)? E, conforme canta a Sagrada Liturgia, não travou Ele um duelo admirável com a morte, que se perpetua na História e desfechará em seu triunfo definitivo no fim dos tempos (cf. Ap 17, 14)?

O espírito guerreiro em nada se opõe à Religião. Pela fé, atesta a Carta aos Hebreus, houve homens que “foram corajosos na guerra e puseram em debandada exércitos estrangeiros” (11, 33-34). A bem dizer, a fé implica num combate, que todo católico deve enfrentar a fim de conquistar a vida eterna (cf. I Tim 6, 12). “Não é, acaso, uma luta a vida do homem sobre a terra?” (Jó 7, 1).

Como se dá, porém, essa peleja em nossos dias?

O combate da fé hoje

“Cavaleiros que aqui me ouvis, escutai somente os gemidos de Sião”, clamou o Bem-Aventurado Papa Urbano II mil anos atrás, quando Jerusalém se encontrava sob o domínio de pessoas mortalmente hostis ao Cristianismo e necessitava de socorro. A expressão parece sobremaneira elucidativa: em cada período histórico, Sião – ou seja, a Santa Igreja Católica – geme à espera de heróis que a defendam. A luta do cristão se cifra em atender tais apelos.

Hoje, quiçá mais do que nunca, os estertores da Esposa Mística de Cristo propagam-se com angústia lancinante. Pobre ameaça representam as hordas de bárbaros, se comparadas às falanges intermináveis de inimigos externos e de traidores internos! Contra o triunfo das trevas não há outro antídoto senão homens que se revelem “luz do mundo”.

Ora, toda luminosidade digna desse nome resulta de uma só combustão: abrasar-se pela causa da Religião.

O elogio de um príncipe da Igreja

Tem-se a impressão de que o Cardeal Franc Rodé, CM, alimentava pensamentos desse gênero quando, em 2009, veio ao Brasil para conferir ao fundador dos Arautos a medalha Pro Ecclesia et Pontifice. Ele já conhecia de perto a instituição havia dois anos e, no momento de entregar a condecoração, o então Prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica proferiu algumas palavras, começando por recordar um trecho de São Bernardo de Claraval: “Faz algum tempo que se difunde a notícia de que um novo gênero de cavalaria apareceu no mundo”.1

O purpurado continuou sua alocução mencionando uma “nova cavalaria”, nascida do “nobre coração” de Mons. João e dotada de um “novo ideal de santidade e heroico empenho pela Igreja”, na qual ele não podia deixar de ver um ato da Divina Providência em vista das necessidades do mundo atual.

Estava tudo dito: na raiz daquele movimento encontrava-se a fidelidade de um varão que soube dizer sim ao sopro do Espírito e se fez guerreiro por amor ao Reino dos Céus, malgrado todos os sofrimentos inerentes a tal condição.

Um ano de tormento

Nos albores do ano de 1958, iniciava-se o expediente na recém-criada 7ª Companhia de Guardas, no quartel do Parque Dom Pedro, em São Paulo. O relógio marcava sete horas da manhã.

Enquanto os oficiais analisavam as fileiras de jovens espadaúdos, trajados com o clássico uniforme de serviço – camisa e calça de brim, cobertura bico-de-pato, coturnos pretos – é bem possível que a atenção de algum deles, dotado de maior acuidade psicológica, tenha sido atraída por um rapaz de média estatura, magro, fisicamente comum, mas cujos olhos e atitude revelavam a lucidez de espírito e a firmeza de caráter próprias aos idealistas.

Apesar da grande promessa que isso significava numa carreira militar, a verdade é que o soldado 113 não desejava estar ali. Ao lado de tais atributos – ou melhor, pairando acima deles numa zona inacessível ao horizonte daqueles oficiais – achavam-se outros. João Scognamiglio Clá Dias – esse era seu nome civil – pertencia à nascente obra de Dr. Plinio Corrêa de Oliveira e, cultivando uma intensa vida de piedade, já fazia meditação com frequência, rezava o Rosário e comungava todos os dias. Desde que encontrara seu mestre espiritual por primeira vez, havia se entregado para sempre a uma vocação de caráter nitidamente religioso.

Ademais, o ambiente do quartel era próprio a causar não pequeno embaraço. Condições promíscuas, somadas às conversas inconvenientes de muitos “praças” e outras ocasiões de tentação, obrigavam-no a sacrifícios e peripécias para manter-se íntegro na fé e na prática da castidade.

Como resultado, seus companheiros o perseguiam, a tal ponto que passava noites inteiras em claro, preocupado com o que poderia acontecer. Chegou mesmo a pedir entre lágrimas que ­Nossa Senhora levasse sua alma, pois parecia-lhe não ter forças para aguentar aquela situação, que ele mesmo intitulou “um ano de tormento”.

Por detrás da prova, um desígnio

Mons. João durante o período de serviço militar, no ano de 1958

Contudo, sabemos que todo sofrimento aceito com generosidade acaba por tornar-se ocasião de progresso. Se “Deus escreve direito por linhas tortas”, o soldado Clá Dias soube transformar aqueles traços retorcidos numa larga avenida rumo à santidade… a uma forma inédita de santidade!

Dando-se conta de que estava fadado a ali permanecer durante um ano inteiro, tomou a deliberação de fazer todo o esforço a fim de aprender o melhor possível as atribuições de um militar, pois haveria de servir-se delas para o apostolado. Aos poucos, as novas impressões descortinaram diante daquela jovem alma uma filosofia de vida.

Antes de tudo, refulgiu aos seus olhos a disciplina. Bastava o militar aparecer com um botão faltando na camisa ou ser visto nas ruas após as vinte e duas horas, para imediatamente ser enviado ao “xadrez”…

Os soldados aprendiam, igualmente, a enfrentar todo tipo de situação adversa, fazendo com que o corpo se sujeitasse às exigências do dever. Realizavam exercícios e trabalhos pesados, entre os quais caminhadas de até trinta horas, com mochila, coturno e fuzil. As dispensas das atividades por algum mal-estar físico eram reguladas pelo termômetro: caso a febre não chegasse aos 37º, o soldado ainda devia permanecer com o conjunto… e apenas quando atingia os 37,5º podia recolher-se à enfermaria.

Sem dúvida tratava-se de um regime duro, próprio a formar homens rijos – talvez até por demais rijos, quando se tem vocação de ser pai de uma família espiritual. Felizmente, no caso de Mons. João essa firmeza pousou sobre a doçura dos amigos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Católico enquanto militar, militar enquanto católico

O soldado Clá Dias, não nos esqueçamos, era católico de Comunhão diária. Décadas depois do serviço militar, ele ainda se recordaria do esforço despendido a fim de conseguir a autorização dos oficiais para se aproximar da mesa eucarística nas ocasiões em que lhe competia pernoitar no quartel, e da pitoresca cena do jovem soldado sendo conduzido num jipe do Exército até a Catedral da Sé e ali entrando com uniforme, pistola 45 e cassetete, para receber o Santíssimo Sacramento. Lance análogo realizou ele, noutra vez, para obter dispensa a fim de realizar um retiro espiritual de alguns dias.

Por fim, pondo de lado os inconvenientes apontados anteriormente, a vida no quartel acabou por arrebatá-lo: encantava-o o fuzil com baioneta calada, a marcha, as ordens de comando, a disciplina. Sobretudo, maravilhava-o constatar o quanto os princípios derivados da sabedoria marcial poderiam constituir um instrumento de santificação para si e para os outros.

No dia em que recebeu a dispensa do serviço obrigatório, tendo sido já promovido a cabo e condecorado com a medalha Marechal Hermes, o comandante do quartel, Ivan de Andrade, chamou-o à parte para conversar. O ex-soldado vestia paletó e gravata, e portava o distintivo de congregado mariano na lapela. Enquanto caminhavam, o oficial apontou a pequena insígnia e disse: “Agora entendo de onde vem todo o seu valor!”

Em seguida ofereceu-lhe ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras, augurando ao jovem uma brilhante carreira nas Forças Armadas. João se tinha adaptado de tal maneira àquela vida que a proposta representou uma verdadeira tentação. Felizmente, sua veneração pela Igreja e por Dr. Plinio já o haviam engajado em outra guerra mais elevada…

Cerimonial no Êremo de São Bento, na década de 1980
Dr. Plinio assistindo a um desfile no ano de 1984
Desfile no ano de 1992

A providencialidade do serviço militar

O Grupo de Dr. Plinio não apresentava ainda o aspecto marcial que deveria caracterizá-lo em breve. Assim, quando Mons. João passava diante do quartel, seus olhos lacrimejavam pela nostalgia daquela vida de combatividade.

Tal prova estendeu-se por aproximadamente cinco anos, até o momento em que ele tomou contato com as anotações de uma reunião feita por Dr. Plinio, na qual ele discorria a respeito do seu desejo de constituir sua obra como uma verdadeira ordem de cavalaria, com as adaptações próprias aos tempos. Muito mais do que uma previsão, para o jovem ­cavaleiro aquelas palavras eram uma promessa.

A partir de então, iniciou-se o longo processo que cinzelaria a obra segundo aquele molde. Promoveram-se os simpósios que passariam para a história do Grupo com o nome de “Itaqueras”, em referência ao bairro de São Paulo onde se encontrava a casa na qual eram realizados. A disciplina que ali regia os horários e as atividades dos jovens já comportava algo de militar, inspirada no exemplo dos Marines2 e nas experiências adquiridas por Mons. João no período de serviço na 7ª Companhia de Guardas.

“As ‘Itaqueras’ começavam com uma reunião na qual era explicada a importância da disponibilidade, da prontidão, do desapego de si mesmo e do egoísmo, e a necessidade de preparar-se para os acontecimentos que o futuro pudesse trazer. Depois, além de aula de catecismo, a sequência do programa comportava debates doutrinários e adestramentos intelectuais ou físicos, muitas vezes em momentos inopinados, nos quais se insistia especialmente na incondicionalidade. […] Esta virtude era apresentada como o pináculo do espírito militar e a característica essencial do perfeito escravo de Maria, que deveria estar disposto a tudo, a qualquer instante, sem impor condições para sua dedicação e obediência”.3

Segundo Dr. Plinio, as “Itaqueras” constituíram um felicíssimo prolongamento de seu sistema cotidiano de formar: “Tinha o valor da seriedade, no reconhecimento da insuficiência do homem e, portanto, da necessidade de um método. E isso também se dá na formação da vontade: é a resolução de adquirir reflexos, de se tornar flexível, rápido, decidido, de ‘desembobar’ e de ser capaz de sacrifícios em toda gama”.4

Daquele momento em diante começou a surdir no movimento uma série de símbolos e instituições com acentuada nota cavaleiresca. Surgiram a capa vermelha, o passo de marcha, com seu caráter firme e elegante, o hábito…

De modo particular, cabe ressaltar a fundação do Êremo de São Bento, no qual deveria florescer um feitio espiritual, uma escola de pensamento e uma mentalidade próprias, capazes de formar o escravo de Maria, guerreiro e monge, o Apóstolo dos Últimos Tempos de que fala São Luís Grignion de Montfort. Esse pequeno pugilo seria a matriz de algo que haveria de espalhar o bom odor de Nosso Senhor Jesus Cristo por toda a face da terra.

Após o passamento de seu mestre e guia, Mons. João logrou realizar façanhas ainda maiores: a criação de um exército de donzelas e um batalhão de sacerdotes, enriquecendo a admirável simbiose entre cavalaria e Religião, pela qual ambas brilham inseparáveis, seja no esplendor das cerimônias, seja no calor dos púlpitos, seja até mesmo na reservada lealdade dos confessionários.

Em síntese, podemos aplicar a Mons. João algumas palavras de Dr. Plinio sobre sua obra, pois foi através dele que esta se tornou “uma versão em termos contemporâneos do espírito do cavaleiro cristão de outrora: no idealismo, ardor; no trato, cortesia; na ação, devotamento sem limites; na presença do adversário, circunspecção; na luta, ­altaneria e coragem; e, pela coragem, vitória!”

Desfile na Casa de Formação Thabor, Caieiras (SP), em agosto de 2014

A cavalaria, uma maravilha por completar

Apenas isso? Não falava o Cardeal Rodé, no discurso acima recordado, em uma cavalaria nova? O que há de realmente inédito na obra de Mons. João para torná-la não uma reedição de instituições do passado, mas algo que aponta ao futuro?

“Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18). Esse versículo do primeiro livro da Revelação expressa uma regra da “arquitetonia” divina no universo: Deus quis que algumas das realidades mais sublimes só atingissem a plenitude de si mesmas quando unidas a outras.

Assim, ao analisar em grandes rasgos a história da cavalaria, fica-se com a impressão de se estar diante de uma ogiva que ainda aguarda receber sua pedra de ângulo. Epopeias alcandoradas como as de São Luís rei, Balduíno IV de Jerusalém e Santa Joana d’Arc emergem aqui e ali a modo de clarinadas prenunciativas numa melodia em compasso de espera, que se alça no desejo de oscular o Céu.

Por outro lado, os incontáveis episódios de aparições angélicas em guerras, desde o misterioso “chefe do exército do Senhor” (Js 5, 14) visto por Josué nas vésperas da invasão de Jericó, ou o ginete branco com armas douradas posto à frente dos Macabeus (cf. II Mac 11, 8), até às cargas celestiais narradas nas crônicas medievas, sugerem haver uma reciprocidade, uma espécie de sofreguidão do Alto por unir-se à cavalaria dos homens.

Um dos primeiros símbolos da Ordem dos Templários – dois cavaleiros compartilhando uma mesma montaria – parece ser a expressão heráldica desse anseio do universo por uma união que só se realizará em plenitude no fim dos tempos, quando Jesus ­Cristo, Cavaleiro Divino de gládio entre os lábios, descer dos Céus acolitado por aqueles que o Apocalipse denomina, sem distinguir entre Anjos e homens, os “exércitos celestes” (19, 14).

Sim, na milícia dos seguidores do Leão de Judá criaturas angélicas e humanas compartilham idêntico teatro de batalha, cerram filas numa mesma carga, enfim, têm em comum as armas, o combate e a glória.

Como não ver a coincidência entre essa realidade e o anseio de Mons. João por sacralizar em padrões militares, até às minúcias, o apostolado e a vida dos Arautos do Evangelho? Não escondamos a lâmpada debaixo do alqueire: trata-se de uma tática de combate espiritual. E, graças a ela, configuraram-se os primórdios de uma autêntica cavalaria angélica.

O que mais dizer? Com que condecoração galardoar esse cavaleiro que fez de sua vida inteira uma epopeia em prol da Fé? O Cardeal Franc Rodé, cujas palavras recordamos ainda uma vez, parece ter encontrado uma fórmula feliz: “Obrigado, Monsenhor, por vosso nobre empenho, obrigado por vossa santa audácia, obrigado por vosso amor apaixonado pela Igreja, obrigado pelo esplêndido exemplo de vossa vida. Vós sois da estirpe dos heróis e dos Santos!” 

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  1. SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. De laude novæ militiæ, n.1. In: Obras Completas. 2.ed. Madrid: BAC, 1993, v.I, p.496. ↩︎
  2. O United States ­Marine Corps é um ramo das Forças Armadas norte-americanas, que funciona como força anfíbia em operações navais. No fim da década de 1960, caiu nas mãos de Mons. João uma revista contendo uma reportagem a respeito dessa tropa de elite, que serviu de inspiração para as “Itaqueras”. ↩︎
  3. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O dom de sabedoria na mente, vida e obra de Plinio Corrêa de Oliveira. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2016, v.IV, p.364-365. ↩︎
  4. Idem, p.365. ↩︎