Pe. Antônio Guerra de Oliveira Júnior, EP
No prólogo de seu Evangelho, o Apóstolo Virgem refere-se pela primeira vez ao maior dos varões nascidos de mulher nestes termos: “Houve um homem, enviado por Deus, que se chamava João” (1, 6).
O Evangelista utiliza o verbo enviar, cujo sentido original em língua grega possui um importante matiz: compartilhando a raiz com o substantivo apóstolo, o termo designa um embaixador, um enviado com representação oficial.1 Assim, por este prisma, João Batista é também apóstolo.2
Cabe então uma pergunta: não será que em cada época histórica a Providência Divina envia, de sua parte, outros tantos “apóstolos” com potestade para ensinar, guiar e, sobretudo, servir de exemplo à sociedade?
A resposta é, sem dúvida alguma, afirmativa. Deus sempre suscitou na Igreja representantes seus, para o cumprimento de altíssimos desígnios. Embora com um chamado distinto daquele dos Apóstolos dos primeiros tempos, eles são realmente embaixadores divinos, quais novos precursores que caminham adiante do Senhor a fim de Lhe preparar um povo bem-disposto (cf. Lc 1, 17).
Portanto, ao tomarmos contato com a história dos santos fundadores de ordens e institutos religiosos, somos movidos a divisar nestes varões e damas providenciais uma missão de tal porte.
Sob a medida da contrariedade
Além de iniciador de uma instituição, o fundador é inconteste modelo de conduta, atencioso mestre e guia inerrante naquilo que compete à sua missão própria, chamado a transmitir a resposta adequada aos desafios e às urgências do tempo e das circunstâncias históricas sempre diversas.3
Por outro lado, ele costuma aparecer como “pedra de escândalo”, pronto a contrariar os desvios e erros de sua época. “É por isso”, afirma Chesterton, “o paradoxo da História que cada geração seja convertida pelo Santo que mais a contradiga”.4
Com efeito, aos fundadores é dado conhecer algo dos misteriosos desígnios d’Aquele cujos juízos são impenetráveis, e inexploráveis os caminhos (cf. Rm 11, 33). A seus seguidores cabe o papel da fidelidade, ainda que em meio a incompreensões e diante de atitudes inusitadas.
No Israel dos tempos de Cristo, o que de mais contrário à regra geral de comportamento haveria que o aparecimento de um asceta misterioso trajado com pelos de camelo, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, e pregando: “Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3, 2)? Ou na Assis de uma Idade Média que infelizmente começava a encetar pelas vias do mundanismo e do gozo da vida, o que de mais inusitado poderia surgir que a figura de um frade de porte angélico vestido com pobres farrapos, a pregar a pobreza e a humildade mais extremas? Os exemplos se multiplicam.
Pois bem, dir-se-ia que Deus Se compraz em forjar embaixadores “sob medida” para cada fase histórica… sendo que sua “medida” é a contrariedade.
A muitos títulos, fundador
Seguindo a regra acima enunciada, não podemos considerar Mons. João Scognamiglio Clá Dias enquanto fundador apenas pelo fato de ter sido mentor e organizador de associações e sociedades pontifícias. Isso seria simplificar muitíssimo a abrangência de sua atuação.
Se os fundadores possuem, com muita razão, o título de embaixadores de Deus, de que maneira esse glorioso epíteto se ajusta à insigne figura que agora, filialmente, recordamos?
Os que conheceram Mons. João de perto são testemunhas de seu caráter fortemente oposto ao espírito neopagão do mundo moderno e às suas máximas, sobretudo ao crescente relativismo que apregoa um modus vivendi entre o bem e o mal.
Termos como intransigência, radicalidade, integridade – bem compreendidos – faziam parte de seu vocabulário corrente e lhe eram extremamente familiares, para alegria daqueles que o seguiam e desgosto de seus adversários que, malgrado inúmeras tentativas, nunca conseguiram encontrar qualquer falta à verdade em suas palavras ou atitudes. Com efeito, “quem caminha na integridade caminha seguro, quem segue um caminho torto é descoberto” (Pr 10, 9). Assim, nosso fundador se assemelhava a Nosso Senhor Jesus Cristo também por este aspecto: amando os pecadores e desejando sua conversão, jamais deixou de odiar e rejeitar o mal.
Em hostilidade com o mundo, o jovem João se define
Essa incompatibilidade de Mons. João com o espírito do mundo teve sua origem, como vimos em artigo anterior, nos remotos tempos da infância.
Quiçá com vistas à realização de sua altíssima vocação é que a Providência Divina tenha querido lhe apresentar, já em tenra idade, a dimensão da maldade e do orgulho humanos, como ele mesmo comentou em diversas ocasiões. Havia dois caminhos diante daquele menino: resignar-se ou inconformar-se.
A hostilidade do ambiente que o circundava, cada vez mais oposto aos ensinamentos católicos, o desprezo pela virtude angélica da pureza, as variadas formas de egoísmo e crueldade de seus coetâneos mais próximos, tudo isso ajudou a que uma resolução se forjasse em sua alma: “Diante do mal, não me renderei!” O resultado é que, do menino, surgiu um leão.
Tímido em criança, João se tornou um jovem valoroso e de forte temperamento. “Quando ele acorda de manhã, a gente não sabe se ele vai tomar café ou fazer uma revolução!”, testemunharia sua mãe em certa ocasião.
Se ainda não existia uma instituição que congregasse almas generosas e abnegadas, seria preciso fundá-la! E, de fato, o jovem João levaria esse empreendimento a cabo, caso não tivesse encontrado outro embaixador de Deus que, havia décadas, partilhava de suas santas inconformidades, embora não se conhecessem.
Dois fundadores, um só carisma
Na história das instituições religiosas é comum encontrarmos, ao lado do fundador, a figura de um ou vários discípulos fiéis. Por vezes, há uma alma incumbida de adaptar o espírito da fundação a um ramo feminino, ou vice-versa, como se dá com São Francisco e Santa Clara de Assis. Entretanto, no caso do que se poderia chamar, em sentido lato, a família de almas dos Arautos, os fatos se deram de modo muito peculiar.
Hoje, a quase vinte e nove anos da partida de Plinio Corrêa de Oliveira para a eternidade, podemos afirmar sem hesitação ter sido Mons. João um outro fundador, na integridade do termo, ao lado daquele que considerava “como verdadeiro pai e fundador”.5 A Virgem Santíssima sabia bem por que dificuldades passava Dr. Plinio, e consentiu em presenteá-lo com um discípulo fidelíssimo, qual novo Josué junto a Moisés, ou novo Eliseu junto a Elias.
Com efeito, as incompreensões se multiplicavam em torno da figura de Dr. Plinio. Muitos dos discípulos mais antigos, desprovidos de qualquer consonância com ele, tinham os olhos postos nos próprios egoísmos e se deixavam ludibriar pelas mais diversas formas de mundanismo, por vezes reclamando vácuas posições de destaque dentro do pequeno grupo que se formava.
Dr. Plinio encontrava-se numa situação bastante delicada. Procurava de todos os modos manter nas trilhas do bem até os discípulos mais “complicados”; porém, percebia que caminhar em direção às grandes metas que tinha em vista significaria granjear a antipatia de vários deles… De outra parte, sabia que Mons. João, ao enveredar pelas sendas da fidelidade a seu mestre, dirigia-se rumo à mesma incompreensão, mas também considerava tudo quanto seu discípulo poderia fazer pelo movimento, atuando em âmbitos nos quais ele próprio, pela força das circunstâncias, não teria oportunidade de agir.
Assim, nas décadas subsequentes ao encontro com Dr. Plinio, Mons. João se revelaria um autêntico fundador de pequenas instituições e de variados costumes, sempre na mais estrita e, por assim dizer, escrupulosa consonância com seu pai espiritual, que aprovava de todo o coração suas ousadas e, amiúde, brilhantes iniciativas.
“João das boas surpresas!”, eis o epíteto com o qual Dr. Plinio premiaria a seu valoroso “Eliseu” em muitas circunstâncias.
Desfiles militares… para religiosos?
Como veremos com detalhe em um dos próximos artigos, tanto Dr. Plinio quanto o então Sr. João eram entusiastas do militarismo e buscavam imprimir notas de ordem e disciplina numa juventude tão carente desses atributos, cada vez mais ausentes na sociedade. A Dr. Plinio cabia estimular em seus filhos espirituais, por meio de reuniões, conversas e de sua própria presença, o desejo de serem valorosos soldados de Maria. Ao discípulo fiel correspondia o papel de plasmar, em movimentos compassados e outros costumes marciais, o entusiasmo de seu pai pela vida militar.
Assim, em 1973 surgiu, sob a égide de Mons. João, um estilo de marcha próprio, “caracterizado por seu ritmo calmo e pausado, mas cuja execução exigia uma extraordinária disciplina”.6 Anos mais tarde, ao presenciar uma cerimônia em que seus discípulos marchavam segundo a nova escola “joanina”, Dr. Plinio comentou: “Se eu tivesse de transpor o meu espírito e a minha mentalidade para um passo de marcha, o resultado seria exatamente esse!”7
Estava fundado com extraordinário êxito um estilo de marcha que, atravessando as décadas, impressionaria e entusiasmaria muitas gerações até os nossos dias.
Artista formado na escola do amor divino
O mesmo ímpeto levou Mons. João a formar um coro polifônico e uma orquestra, que fariam turnês pela América e Europa durante anos. Foi numa dessas ocasiões que ele recebeu um elogio singular: um grande maestro da cidade de Palestrina, na Itália, afirmou jamais ter ouvido um Sicut cervus, obra imortal de seu ilustre concidadão, tão bem interpretado em sua vida.
A partir desse núcleo inicial, dezenas de coros e fanfarras se organizariam sob uma mesma escola de disciplina e interpretação, atingindo uma amplitude pastoral impressionante. Nos lugares mais humildes ou em meio aos esplendores de catedrais, basílicas e palácios de governo, os coros de Mons. João beneficiaram milhares de pessoas das mais diversas gamas da sociedade. A cena tornou-se comum: fiéis com lágrimas nos olhos, exprimem efusivamente sua gratidão pela oportunidade de ouvir tão elevadas melodias. Através dessas iniciativas apostólicas, a Providência Divina jamais perdeu a oportunidade de agir nas almas, elevando-as ao Céu.
Cabe mencionar ainda outro dom artístico de nosso fundador, que lhe permitiu impulsionar e orientar a construção e decoração de diversas basílicas e igrejas em todo o mundo, num estilo tradicional mas inovador, recolhido mas feérico, utilizado pelo Pai Celeste para distribuir graças incontáveis e operar conversões. “Eu quero que as pessoas que entrem aqui recuperem o estado de graça”, afirmou Mons. João durante a construção da Basílica de Nossa Senhora do Rosário, em Caieiras, São Paulo.
Por fim, recordemos sua suprema maestria ao se utilizar da “arte das artes”: a direção das almas, ofício que, enquanto pai espiritual, amigo e confessor, desempenhou de forma insuperável.
Certa vez, ao orientar um de seus filhos espirituais sobre o modo de realizar o apostolado com as novas gerações, Mons. João observou como elas eram atraídas pela bondade, acima de qualquer outro fator. Atingidos por problemas familiares cada dia mais frequentes e profundos, os jovens manifestavam uma carência de afeto maior. Assim, fazia-se necessário que os formadores ganhassem sua confiança por meio de um verdadeiro “apostolado da bondade”, do qual nosso fundador deu luminoso exemplo ao longo da vida.
A alegria juvenil de Mons. João manifestava-se de maneira muito especial quando, da janela de seu apartamento, lançava chocolates e doces variados aos filhos que aguardavam embaixo o paternal “bombardeio”. Muitos dos que eram jovenzinhos naqueles tempos, até hoje guardam inocentes lembranças desses episódios, deles se recordando com gratidão.
Em outras ocasiões, Mons. João servia de seu próprio lanche aos pequenos, que se apinhavam em torno de sua mesa para ouvi-lo e estar perto dele. Podia-se então contemplar naquele varão grandioso a atenção de um pai, o carinho de uma mãe e o afeto de um amigo. E isso para não mencionar as horas dispendidas em conselhos particulares, conversas espirituais, Confissões…
É por essa razão que Mons. João logrou conquistar a confiança e o afeto de todos, dos mais jovens aos mais antigos. Ele demonstrou que a seriedade e a prática da virtude são perfeitamente harmônicas à alegria e à bondade, e que a verdadeira autoridade é merecedora da mais sincera estima.
Um futuro glorioso se vislumbra no horizonte!
Ao término destas linhas, o leitor certamente concordará com a afirmação feita no início do artigo de que a ereção de institutos e associações é apenas um aspecto da graça fundacional manifestada em Mons. João. Na verdade, eles constituem apenas um desdobramento das maravilhas contidas em sua alma.
Assim, a Associação de Fiéis Arautos do Evangelho, a Sociedade Clerical Virgo Flos Carmeli, a Sociedade Feminina Regina Virginum, o Instituto Filosófico Aristotélico-Tomista, o Instituto Teológico São Tomás de Aquino, o Instituto Filosófico-Teológico Santa Escolástica e outras tantas realidades jurídicas nos mais diversos âmbitos são algumas das flores de uma obra que, qual árvore verdejante, está plantada junto às águas da Santa Igreja, a seu serviço (cf. Sl 1, 3).
Mas esta árvore, nós o cremos e constatamos, é fecundíssima. Suas flores, apesar de belas e perfumadas, são mero anúncio dos incontáveis frutos que virão, ao preço da fidelidade do fundador dos Arautos, num futuro glorioso que não se cansará de contemplar, agradecido, o tesouro que brotou de um coração apaixonado por Jesus e Maria, o qual não quis outra coisa ao longo de toda a sua vida que a realização da súplica repetida há dois mil anos pela Igreja: “Venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu”.
- Cf. FERNÁNDEZ, Aurelio. Teología Dogmática. Curso fundamental de la Fe Católica. Madrid: BAC, 2009, p.211; 621-622. ↩︎
- Cf. SÃO JERÔNIMO. Homilía sobre el Evangelista Juan (1,1-14). In: Obras Completas. 2.ed. Madrid: BAC, 2012, v.I, p.949. ↩︎
- Cf. SÃO JOÃO PAULO II. Mensagem aos participantes no Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais, n.4. ↩︎
- CHESTERTON, Gilbert Keith. São Tomás de Aquino. Porto: Civilização, 2009, p.16. ↩︎
- CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. A gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu reconhecimento canônico. Tese de doutorado em Direito Canônico – Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino. Roma, 2010, p.23-24. ↩︎
- CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O dom de sabedoria na mente, vida e obra de Plinio Corrêa de Oliveira. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiae, 2016, v.IV, p.416. ↩︎
- Idem, ibidem. ↩︎